Excerto da Novela inédita, com o título "Forrobodó".
AMOR E LITÍGIO NO
TRIBUNAL
O episódio que vou
contar a seguir ocorreu ainda quando eu era um recatado oficial de justiça e
surge aqui como um elemento fundamental para o desenvolvimento desta novela e
da minha própria vida.
&&&&&&
Apesar de existir
no Estatuto dos Magistrados uma norma que diz que aqueles que são casados ou
têm algum grau de parentesco entre si não podem trabalhar juntos, e apesar da
existência da lei que contempla e consagra direitos sobre as uniões de facto, a
verdade é que o Estatuto é omisso quanto aos relacionamentos e à vida em comum
entre magistrados que não assumam declarada e legalmente o seu envolvimento e a
sua vida em comum.
O juiz vivia com um
procurador da República uma ligação homossexual. Trabalhavam ambos no mesmo
Tribunal. E sendo duas carreiras diferentes, os interesses conflituantes, e os
constrangimentos legais, de ética e de imparcialidade deverem ser assegurados,
o facto é que eles tinham extrapolado a lei e julgado em causa própria, sem
isenção, para libertarem o seu amor.
Não serei
tendencioso, acusador ou malévolo ao ponto de afirmar com convicção que existe
um lobby homossexual na magistratura
portuguesa. Certamente que, em todas as classes profissionais e estratos
sociais, existem homossexuais. Simplesmente neste caso falamos de pessoas que
para além de exercerem e executarem as leis, são eles próprios legisladores
dando corpo aos decretos e diplomas legais.
Este poder é como
uma força poderosa e imparável que mais cedo ou mais tarde acabará por derrubar
todas as barreiras, preconceitos, túneis e por fim os aparentemente sólidos
edifícios de leis conservadoras.
O juiz e o seu
amante e companheiro procurador da República eram assumidamente defensores do
casamento homossexual. Faziam questão de o assumir publicamente nos seminários
e nos congressos onde participavam e na sua própria vida pública. Certamente só
para não colidirem com a incompatibilidade de trabalharem juntos, é que não
expressavam o seu desejo profundo de, quando a lei fosse aprovada, virem a
contrair matrimónio.
O certo é que eles
se amavam e a sua vida era em tudo decalcada da normalidade e da simplicidade
de um relacionamento heterossexual.
Como fazia exercício no mesmo ginásio que eles
frequentavam e dado trabalharmos juntos, tive o privilégio de conviver com eles
e de assistir a muitas das suas pequenas manifestações de ternura. Perante tais
evidências, e apesar da minha opinião preconceituosa, tive que reconhecer que o
amor não tem sexo, não é masculino nem feminino, é plural. É tão-somente amor. Pode manifestar-se nas mais diferentes formas e situações.
Por consequência
também ele é vulnerável, volúvel e está sujeito ao desgaste, ao cansaço e à
pressão. Também ele pode acabar, evaporar ou tão simplesmente expressar outra
vontade ou desejo. Deixar-se apaixonar por outro corpo, outra pessoa, pela
mudança.
Quando o piloto de
aviação civil recorreu ao tribunal para regular o poder paternal do seu filho,
nascido de um acto heterossexual esporádico e equívoco, a sua beleza tão
marcada quanto a evidência da sua homossexualidade, colheu de surpresa os
sentimentos do procurador da República. A “química” entre os dois homens
produziu uma reacção imediata. Dir-se-á que foi um fulminante amor à primeira
vista. Tal reacção teria, inevitavelmente, que produzir efeitos corrosivos na
relação entre os dois antigos amantes.
Como sempre
acontece a qualquer casal desavindo, entre o juiz e o procurador da República
começaram as cenas de manifesto ciúme, as cobranças, as ameaças, os gritos, as
lágrimas e os diálogos de incontida raiva. A discussão violenta sobre a
partilha do espaço e dos objectos comuns, adquiridos na constância do seu
relacionamento. O litígio sobre a forma como resgatar o amor-próprio e os bens
pessoais de cada um.
No tribunal
vivia-se um autêntico clima de guerrilha entre ambos. Nós, os funcionários,
andávamos nos bicos dos pés, tentando não pisar os calos de alguma mina ou
armadilha colocada por qualquer um deles, ou por ambos, e irmos pelos ares.
Nada pode ser pior do que uma briga entre um casal. Os estilhaços explodem em
todas as direcções.
Ainda faltavam
alguns meses para que lhes fosse possível concorrerem ao movimento dos
magistrados e movimentarem-se para outros tribunais, deixando desta forma de
trabalharem lado a lado, por isso foram-se servindo de subterfúgios,
apresentando à vez atestados médicos para não colidirem com o despeito e o ódio
que se instalara entre eles. Por essa altura já o procurador da República tinha
deixado a casa de morada de família e se tinha mudado para o apartamento do
piloto, onde ambos esvoaçavam nas nuvens, inebriados pela lufada de ar fresco
do seu amor.
Entretanto a lei
que consagrara os casamentos homossexuais fora aprovada e publicada em Diário
da República, sem que daí o juiz e o procurador pudessem aproveitar comummente o
efeito pelo qual os dois tanto tinham lutado.
Continuaram no
entanto ambos a promover e a despachar o processo de regulação do poder
paternal onde o piloto e ora amante do procurador da República era um dos
interessados. Transportaram assim as suas mágoas e quezílias para um processo
legal onde ambos deviam ser imparciais, mas que se tornou um verdadeiro ringue,
num autêntico combate corpo a corpo. Numa falta de respeito, de vergonha, de
moral e de ética, completamente cegos pelas suas disputas amorosas, ultrajando
a sua condição humana e profissional e denegrindo a sua imagem e a da justiça,
sem qualquer pejo ou remorso.
Quando finalmente
saiu o movimento dos magistrados e o procurador da República foi movimentado
para outro tribunal, já o processo do piloto se encontrava no tribunal da
Relação em fase de recurso, para onde o procurador recorrera das
arbitrariedades do juiz e para defender os interesses do seu amante.